27 janeiro, 2017

A Academia, o "acordo" e o que pensa Mia Couto


Segundo percebo dos propósitos da Academia as  suas sugestões sabem a pouco.
É o que eu percebo, até por leituras muitas e tantas e esta, de Mia Couto:

«Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
   A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.
   Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.
   No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
   Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
   Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:
  • Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
  • No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
  • A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
  • O mato desconhecido é que é o anonimato?
  • O pequeno viaduto é um abreviaduto?
  • Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.
  • Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?
  • Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
  • Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
  • O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
  • Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?
  • Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
  • Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
  • Mulher desdentada pode usar fio dental?
  • A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
  • As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?
  • Um tufão pequeno: um tufinho?
  • O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
  • Em águas doces alguém se pode salpicar?
  • Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
  • Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
  • Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
  • Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
   Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
   Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.»
11/04/1997
Mia Couto
in http://ciberduvidas.sapo.pt/antologia/miacouto.html

6 comentários:

  1. Amanhã virei ouvir o Mia. Agora li o texto e diverti-me com o sumário das perguntas que se podem colocar à Língua. Vê, o Rogério, porque o Mia me apaixona? Porque transcrevo os seus textos, as suas crónicas?
    Gostei e concordo com as palavras de Saramago. Efectivamente, não há uma Língua Portuguesa, há línguas faladas em português, porém, o que se passou com os PALOP? Cada um mergulhou na onda de influência geopolítica de conveniência, apenas tendo em conta as suas potencialidades económicas...

    "(...) É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.»

    Urgentíssimo, diria eu, que só sei que nada sei!!

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    1. Saber que nada sabemos é requisito saudável para alcançar brilhos, novos e antigos

      Nada mais cinzento que a vaidade dos sabe-tudo

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  2. Ontem estive aqui. Fiz uma primeira leitura, sem ir aos links nem ouvir o Mia.
    Hoje vim ler tudo. E ver o vídeo. Também estou de acordo com o Saramago. E com o Mia. Estive em Moçambique. No norte, os indígenas quase só falavam o seu dialeto. E os que falavam o português muitas vezes misturavam palavras. É natural que com o tempo o seu português seja diferente do nosso pela inclusão de algumas dessas palavras. O que penso não seja muito natural é que sejamos nós que andamos a reboque desses outros países com quem partilhamos a língua. (isto não soa lá muito bem pois não?)
    Um abraço e bom fim de semana

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    1. Nem queiras saber
      o gozo que dá ouvir um tripeiro as esgrimir argumentos com um alentejano sob o ar muito concentrado de um madeirense

      tive uma colega açoriana que teimava que olho se escrevia com um "u" (ulho!, teimava ela)

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  3. Acabo de responder a um pedido de opinião da APE que pretende apurar qual a posição dominante entre os sócios, acerca da questão do "Acordo", agora, de novo, sob escrutínio. Assinalei o "contra".
    Incoerência com a minha prática? Não. Escrevo mal, apenas porque tenho a mania de querer fazer tudo "bem".

    Concordo que a Língua tem de ser mais do que um simples conjunto de regras ortográficas. O mais importante será sempre a força da expressão, a Comunicação e essa... Cada um sabe de si!

    Lídia

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  4. Enquanto transcrevia
    este belo texto do Mia
    o corrector ortográfico
    registava 17 erros

    Se os corrigisse matava-lhe o que tem de mais belo e respeitável: a vivacidade da cultura moçambicana.

    Lídia, nem outra coisa esperava que respondesse à APE...

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